Para se compreender a teoria junguiana, um dos pontos principais é a ideia de inconsciente, uma vez que para Jung todo o campo de consciência deriva do inconsciente, e não ao contrário, como defendia Freud (o inconsciente sendo o “porão” da consciência, onde são mantidos conteúdos reprimidos). Ocorre que em todas as teorias de base analítica (Jung, Freud e Adler) a importância dos conteúdos inconscientes é ressaltada, ainda que sob um olhar diferenciado em cada uma delas. Em poucas palavras, segundo Stein (2005, p. 89), “A noção de um inconsciente é fundamental para todas as psicologias de profundidade. Ela separa as psicologias de profundidade dos outros modelos psicológicos”.
Sendo assim, faz-se necessário compreender o que exatamente Jung entendia por inconsciente, apesar do fato de que ele sempre manteve uma atitude de humildade diante do “saber” humano, chegando mesmo a afirmar que: “Não devemos, entretanto, iludir-nos, pensando ter descoberto a verdadeira natureza do processo inconsciente. Jamais conseguiremos ultrapassar o hipotético “como se”” (JUNG, 2021, p. 66).
Segundo Stein (2005, p. 23), para Jung, o que distingue as características conscientes e inconscientes da psique é o fato de que a consciência é o que conhecemos, enquanto a inconsciência é “tudo aquilo que ignoramos”; portanto, o inconsciente refere-se ao “psíquico desconhecido”. Diante do imensurável campo desse “desconhecido”, podemos entender o porquê da sua sinceridade quanto aos limites do saber humano.
Importante ressaltar de início que, na teoria geral junguiana, adentrando-se em um campo de bastante profundidade, Jung destacou não só a existência do inconsciente individual, ou seja, adquirido por cada pessoa durante sua existência pessoal (como um ser “separado”), como também resgatou, investigou e reelaborou a noção de inconsciente coletivo (dimensão que “ultrapassa a esfera meramente pessoal”), dando um caráter totalmente peculiar às suas explicações teóricas como também à sua prática clínica no tratamento de distúrbios psicológicos.
No capítulo 1 da obra O Eu e o Inconsciente, Jung expõe seus conceitos acerca do inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo, assinalando de pronto que, além de conteúdos infantis reprimidos, o inconsciente inclui “todo material psíquico que subjaz ao limiar da consciência”. Jung considera, ainda, que esses componentes psíquicos subliminais são “sementes de futuros conteúdos conscientes”; sendo essa, portanto, a primeira característica do inconsciente. Outra característica destacada é o fato de o inconsciente nunca estar em repouso (inativo), encontrando-se sempre em atividade (como, por exemplo, a produção contínua de sonhos e fantasias), “empenhado em agrupar e reagrupar seus conteúdos”, sendo ainda coordenada com a consciência através de uma constante relação de compensação; salvo nos casos patológicos, quando a atividade do inconsciente torna-se completamente autônoma por se desconectar dessa relação natural com o campo consciente e cuja desunião interna propicia as neuroses.
Assim, fica nítido que na atuação prática junguiana, ou seja, nos tratamentos baseados na psicologia analítica, é essencial o manejo (ou enfrentamento) de tais questões referentes ao inconsciente (pessoal e coletivo). Em outra obra, Jung – discorrendo sobre a função transcendente – chega a afirmar que:
A compensação inconsciente de um estado neurótico da consciência contém todos os elementos que, quando conscientes, isto é, quando compreendidos e integrados como realidades na consciência, são capazes de corrigir eficaz e salutarmente a unilateralidade da consciência. (JUNG, 2021, p. 123)
Imprescindível, ainda, para lidar com o inconsciente, o trabalho analítico de interpretação dos sonhos e fantasias, uma vez que são, dentre outras, as principais manifestações do inconsciente que podem nos fornecer uma luz acerca de seus conteúdos. Desse modo, para Jung, o tratamento analítico proporciona um “diálogo” necessário entre o consciente e o inconsciente do paciente, resgatando a ponte entre essas dimensões, fundamental para a saúde psíquica. Isto porque, segundo afirma em sua obra Psicologia do Inconsciente: “A falta de solidariedade com o inconsciente significa ausência de instinto, ausência de raízes”; todavia, “Quando conseguimos estabelecer a denominada função transcendente, suprime-se a desunião com o inconsciente e então o seu lado favorável nos sorri” (2021, p. 128). Ainda quanto ao papel primordial da dimensão inconsciente e da interpretação dos sonhos, na sequência do acima citado, Jung aponta:
No caso de um tratamento pelo método aqui indicado, a orientação vem do inconsciente. A crítica, a escolha e a decisão ficam reservadas ao consciente. Se a decisão foi certa, a confirmação vem através dos sonhos que indicam progresso; se não foi, vem uma correção por parte do inconsciente. Assim sendo, o processo do tratamento é como um diálogo ininterrupto com o inconsciente. Está implícito em tudo o que foi dito antes, que o papel principal cabe à interpretação correta dos sonhos. (JUNG, 2021, p. 124)
Nessa mesma linha de entendimento, na obra O Eu e o Inconsciente, Jung esclarece a forma como os sonhos se manifestam enquanto atividade psíquica que independe da vontade consciente do indivíduo, sendo assim uma manifestação natural do campo inconsciente, bem como aponta a característica teleológica do processo psíquico; razão pela qual no tratamento analítico os sonhos devem ser submetidos a um exame minucioso a fim de se compreender em profundidade o funcionamento da psique do paciente. Vejamos na íntegra o seu §210 pela sua brilhante elucidação:
Os sonhos contêm imagens e associações de pensamentos que não criamos através da intenção consciente. Eles aparecem de modo espontâneo, sem nossa intervenção e revelam uma atividade psíquica alheia à nossa vontade arbitrária. O sonho é, portanto, um produto natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar indicações ou pelo menos pistas de certas tendências básicas do processo psíquico. Este último, como qualquer outro processo vital, não consiste numa simples sequência causal, sendo também um processo de orientação teleológica. Assim, podemos esperar que os sonhos nos forneçam certos indícios sobre a causalidade objetiva e sobre as tendências objetivas, pois são verdadeiros autorretratos do processo psíquico em curso. (JUNG, 2021, p. 19)
Ademais, quanto a essa relação do EU (consciente) com o INCONSCIENTE, vale ainda frisar que – em tese – são três os possíveis resultados da assimilação dos conteúdos inconscientes pelo “eu” (ego/consciente): (a) o conteúdo se apresenta ao campo consciente, mas o ego o rejeita ou o desvia pelos mecanismos da resistência e da projeção, na proporção da força da persona); (b) o conteúdo é bem recebido pelo ego e, assim, assimilado pela dimensão consciente (sobretudo quando já existe um eixo ego-self bem estruturado), resultado daí uma saudável relação entre ambas as dimensões do ser; (3) o conteúdo inconsciente, em forma de fortes complexos autônomos – sobretudo oriundos do inconsciente coletivo – rompe a fronteira com o consciente de modo irresistível/incontrolável e pleno de autonomia, resultando nos distúrbios mentais de toda ordem, a exemplo da “loucura”, ou ainda em expressões exageradas em razão da chamada “inflação psíquica”, quando o indivíduo acessa material arquetípico do inconsciente coletivo e não consegue distinguir tal conteúdo (coletivo, e não seu) de sua própria pessoa.
Jung considera também como característica do inconsciente o fato de ser um processo energético que se baseia nos mecanismos de oposição (para ele tudo na psique ocorre em função de um oposto) e de entropia. Sendo assim, na psicoterapia analítica, torna-se fundamental a exploração dos aspectos sombrios da personalidade, a fim de assimilar ao máximo as oposições existentes na psique do paciente e, desse modo, atingir a inteireza ou a integridade (e não a perfeição, visto que essa não existe na natureza).
Assim, no inconsciente ocorre um constante e dinâmico movimento de energia que impulsiona todas as atividades do sistema psíquico. Essa energia é chamada por Jung de libido (libido = energia psíquica, energia vital), que tem, portanto, natureza contraditória ou ambivalente, conforme acima mencionado. Para Jung, a oposição característica da psique é que gera o equilíbrio; sendo assim, fica claro sua crítica à unilateralidade de qualquer expressão ou manifestação humana, tendo em vista que é exatamente a unilateralidade (ou sua decorrente estagnação energética) que está na raiz dos desequilíbrios psíquicos. Em outras palavras, Jung discorre em sua obra sobre a função reguladora dos contrários, através do conceito de enantiodromia (tendência ao movimento em direção contrária), ou seja, ao constante fluxo dos movimentos progressivo (orientado pela consciência, em direção ao externo) e regressivo (orientado pelo inconsciente, em direção ao interior).
Quanto à importância dada por Jung ao conteúdo arquetípico do inconsciente coletivo, podemos assinalar, de modo resumido, o último parágrafo do capítulo:
Diante desses fatos devemos afirmar que o inconsciente contém, não só componentes de ordem pessoal, mas também impessoal, coletiva, sob a forma de categorias herdadas ou arquétipos. Já propus antes a hipótese de que o inconsciente, em seus níveis mais profundos, possui conteúdos coletivos em estado relativamente ativo; por isso o designei inconsciente coletivo. (JUNG, 2021, p. 26)
Comentarios