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Jung e sua atividade psiquiátrica inovadora

Foto do escritor: Kahlinne Rocha BrandãoKahlinne Rocha Brandão


A carreira médica de Jung iniciou-se na clínica psiquiátrica Burghölzli da Universidade de Zurique, a partir de 1900. É interessante saber quais interesses e preocupações que sempre nortearam a prática clínica de Jung. Numa época em que a medicina se ocupava unicamente com a descrição de sintomas e o estabelecimento de diagnósticos, Jung, por sua vez, buscava entender a personalidade do doente mental, o que se passava no interior de seu espírito, enxergando-o como um ser humano dotado de individualidade, que precisava ser levada em conta no tratamento médico psiquiátrico, assim como sua história ou drama pessoal.

Essa sua atitude diferenciada na atividade psiquiátrica, mais humana e interessada pela subjetividade dos pacientes, desperta nossa admiração por toda sua carreira médica. Na obra Memórias, Sonhos, Reflexões são apontados vários casos, sobretudo de esquizofrenia (“demência precoce”, à época), tratados por Jung de modo ousado e corajoso, seguindo os seus “próprios métodos”, que eram dotados de intuição e de interesse pela individualidade do seu paciente. Fazendo uso de seus estudos sobre as associações, bem como da investigação do inconsciente, ele obtinha informações, até então desconhecidas, acerca da história pessoal dos pacientes, geralmente trágicas. Atuando como um “arqueólogo” do psiquismo do doente, pacientemente, trazia à tona segredos e medos ocultos que estavam na raiz do distúrbio mental que se apresentava.

Em alguns casos, Jung foi bastante ousado no tratamento; todavia, agia sempre com bastante interesse pelo contexto de vida do paciente e, assim, seguindo sua forte intuição, obtinha desfechos até mesmo surpreendentes.

Neste ponto, chama bastante a atenção o seguinte comentário:

Em muitos casos psiquiátricos, o doente tem uma história que não é contada e que, em geral, ninguém conhece. Para mim, a verdadeira terapia só começa depois de examinada a história pessoal. Esta representa o segredo do paciente, segredo que o desesperou. Ao mesmo tempo, encerra a chave do tratamento. É, pois, indispensável que o médico saiba descobri-la. (JUNG, 1992, p. 110)

Com essas palavras, percebemos o quanto Jung considerava importante o clínico buscar – com bastante paciência – compreender o paciente em sua integralidade, exercendo uma prática psicoterapêutica em profundidade, e não apensa se limitar apressadamente aos sintomas e diagnósticos, bem como considerava fundamental a investigação dos assuntos inconscientes que, invariavelmente, estão por trás da problemática apresentada. Para tanto, Jung fazia uso da hipnose (a qual renunciou mais tarde, pela obscuridade e incerteza no resultado), da experiência de associações, que causavam reações psíquicas significativas, e da interpretação dos sonhos dos pacientes, realizando tratamentos bem-sucedidos, alguns até mesmo beirando a “milagres”; o que contribuiu para que logo obtivesse fama em sua carreira, atraindo cada vez mais clientes para sua clínica particular, não só da Europa como também dos Estados Unidos da América.

Outras passagens bastante interessantes – que apontam sua atitude clínica humana e da qual podemos extrair uma boa direção para nossa atuação profissional –, mencionam o seguinte entendimento de Jung:

Os diagnósticos clínicos são importantes pelo fato de proporcionarem uma certa orientação, embora não ajudem o paciente. O ponto decisivo é a questão da “história” do doente, pois revela o fundo humano, o sofrimento humano e somente aí pode intervir a terapia do médico. (JUNG, 1992, p. 115)

Ao debruçar-me sobre os doentes e seu destino, compreendera que as ideias de perseguição e as alucinações se formam em torno de um núcleo significativo. No fundo, há os dramas de uma vida, de uma esperança, de um desejo. Se não lhes compreendermos o sentido, é uma falha nossa. (JUNG, 1992, p. 117/118)

Visto de fora, só se manifesta no doente mental a trágica destruição de que é vítima; raramente aparece a vida, o lado da alma que não está voltado para nós. (JUNG, 1992, p. 119)

Portanto, Jung buscava entender o sentido psicológico das reações dos doentes psicóticos, bem como os conteúdos particulares de suas fantasias e delírios, por entender que por trás de suas ideias delirantes e gestos incompreensíveis havia sempre uma linguagem que fazia sentido e que o clínico poderia decifrar, caso buscasse compreender o distúrbio mental em profundidade e a personalidade do doente em sua totalidade, através do tratamento psicoterapêutico que considerasse o sofrimento oriundo de sua vida interior, e não somente levasse em conta os fatos externos e aparentes, os efeitos neurológicos e o estabelecimento de diagnósticos. Para ele, a cura ou a melhora do paciente dependia, essencialmente, dessa atitude.

Na referida obra, Jung deixa claro que em sua atividade psiquiátrica não havia um método psicoterapêutico ou analítico específico, que se aplicasse a todo e qualquer caso clínico, pois para ele “cada caso exige uma terapia diferente” e, portanto, o tratamento deve ser individualizado para cada paciente. Assim, Jung considerava que o estabelecimento de regras gerais nos tratamentos psiquiátricos só podia ser feito com certa reserva, uma vez que a diversidade das histórias e vivências pessoais dos pacientes exige o tratamento personalizado, bem como recomendava o uso prudente das hipóteses ou pressuposições teóricas.

Com essa postura de priorizar a compreensão individual na prática clínica, Jung considerava a análise um diálogo entre dois interlocutores, dois seres humanos, um em face do outro, e ambos com algo a dizer! Todavia, foi através dessa busca pela compreensão individual dos conteúdos simbólicos presentes nas manifestações psicóticas que Jung percebeu também a importância de estudar a mitologia. Isto porque logo entendeu que durante a análise, apesar de individual, era preciso ainda estabelecer o confronto com as ideias coletivas, em face do vasto “horizonte da alma humana” cuja complexidade abrange o mundo inteiro.

Mais adiante, Jung esclarece a necessidade da análise didática pelo psicoterapeuta, uma vez que, antes de buscar compreender o paciente, o analista ou psicoterapeuta precisa se auto conhecer em profundidade, conhecer sua alma, seus dramas pessoais e suas questões inconscientes, pois só assim poderá tratar adequadamente dos pacientes que chegam a seu consultório. Isso se justifica na medida em que a personalidade inteira do psicoterapeuta também estará atuando na análise de seus pacientes.

Existe, em verdade, o que se chama de “pequena psicoterapia”, mas na análise propriamente dita é a personalidade inteira que é chamada à arena, tanto a do médico quanto a do doente. (JUNG, 1992, p. 122)

Portanto, para Jung, há uma influência mútua durante o tratamento analítico e, em certos casos, é justamente a atitude pessoal do analista ou psicoterapeuta, ou reação ao paciente (contratransferência) que fará a diferença no resultado terapêutico. Razão pela qual o analista ou psicoterapeuta precisa estar sempre atento igualmente aos seus próprios conteúdos inconscientes e reações manifestadas em sua atuação profissional.

Outra postura de Jung bastante profissional é a de não buscar pressionar ou converter seus pacientes, deixando-os alcançar suas próprias concepções (ou ter seus próprios insights), pois para ele era isso que importava no processo analítico. Sobretudo, no que tange à religiosidade e às crenças, Jung tinha uma atitude neutra, ainda que levasse em conta a importância da experiência simbólica fornecida pelas religiões ou pelos mitos, os quais tinham a função primordial de conectar os indivíduos com os ancestrais e a natureza. Para ele, um grande fator causal das neuroses seria a ausência de viver esses símbolos:

Mas viver e sentir o símbolo, desta maneira, pressupõe a participação viva do crente e é ela que falta, frequentemente, ao homem de hoje. Em geral, o neurótico não a tem. Nesse caso ficamos reduzidos a observar se o inconsciente produz espontaneamente símbolos que substituam esta falta. (JUNG, 1992, p. 128)

Ainda no que tange à vivência interior (“ou aventura espiritual”), ele pontua o quanto a maioria dos seres humanos ainda não está preparada para experimentá-la como uma realidade psíquica, buscando sempre uma justificativa de cunho sobrenatural ou histórico: “Diante desta questão explode às vezes um desprezo pela alma, tão imprevisto quanto profundo” (pag. 129). Sendo assim, uma vez desconectados do mito ou da alma (que se daria através do inconsciente), os seres humanos tornam-se dissociados e neuróticos.

Por fim, o olhar mais atento ao conteúdo da referida obra, em seu capítulo Atividade Psiquiátrica, nos permite ter uma noção do quanto a atuação profissional de Jung foi inovadora, pioneira, quebrando as barreiras e limites do intelectualismo reinante à época! E o quanto seu legado foi útil ao campo da psicoterapia, pois obra inteira retrata sua atitude aberta em face do mistério que envolve a psique/alma que, segundo ele pontuou, é bem mais complexa que o físico/corpo. É sua visão ampla que nos permite hoje dar um passo mais além no olhar clínico para os desequilíbrios mentais.

Referência:
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Texto extraído de trabalho realizado pela autora no curso de pós-graduação em Psicologia Junguiana.
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