Os transtornos alimentares são alterações disfuncionais do comportamento alimentar que causam prejuízos à saúde física e ao funcionamento psicossocial do indivíduo. A anorexia nervosa, a bulimia nervosa e o transtorno da compulsão alimentar são os distúrbios psíquicos especificados mais conhecidos na área clínica; porém, há diversos outros transtornos alimentares não especificados cujos sintomas também podem acarretar sofrimentos e sérios prejuízos na vida do indivíduo, quer seja no campo afetivo, social, profissional etc.
Os TAs refletem, à primeira vista, preocupações persistentes acerca da forma ou do peso corporal por parte dos pacientes, assim como também distorções relativas à sua autoimagem corporal e/ou à sua autoestima, demandando um tratamento psicológico que leve em conta tais causalidades ou outros fatores psicogênicos.
Todavia, numa abordagem psicodinâmica levamos também em consideração a possibilidade de haver questões inconscientes importantes de serem investigadas para fins de entendimento mais amplo da etiologia dos TAs, além dos aspectos cognitivos, familiares e ambientais, por exemplo. Assim, várias teorias vêm sendo levantadas no campo da psicologia profunda (psicanálise e psicologia analítica) acerca dos conflitos inconscientes dos TAs, buscando entender não só a etiologia dos sintomas como também, por exemplo, seu significado simbólico.
Isso porque são inúmeros os fatores psicogênicos que podem estar na origem dos sintomas dos TAs, desde medos ativados no início do desenvolvimento infantil a crises existenciais decorrentes da meia-idade, opções disfuncionais e inconscientes de lidar com lutos, frustrações e angústias, ou ainda consequência paralela a quadros de ansiedade e de depressão.
Os TAs podem ser um caminho para lidar com medos existenciais e da maturidade, uma escapatória para angústias ligadas à sexualidade emergente ou um modo de enfrentar a ferida narcísica do fim da infância. Ou, ainda, podem representar a busca de refúgio por meio da desnutrição e da negação do corpo contra abuso e maus-tratos, com um desligamento do mundo material. Na verdade, as pacientes não apresentam falta de apetite, exceto em fases mais avançadas, devido à cetose, mas estão obstinadamente preocupadas com a comida. Há um sentimento profundo de ineficácia, sendo os sintomas – capacidade de controlar a comida, por exemplo – uma forma de avaliação do valor pessoal. (EIZIRIK; AGUIAR, SCHESTATSKY)
Na psicoterapia junguiana, consideramos o complexo materno (complexo ideoafetivo relacionado à imago materna) como um dos fatores fortemente associados aos transtornos alimentares, uma vez que a ALIMENTAÇÃO e a função de nutrição e absorção dos alimentos estão simbolicamente vinculadas à função materna. Portanto, sabemos que a investigação acerca da interação entre mães e filhos é de suma importância para o entendimento da psicodinâmica dos referidos transtornos.
A título de exemplos da influência do complexo materno e das fantasias correlatas nos sintomas dos TAs: um(a) paciente com anorexia nervosa pode estar “resistindo” à imagem materna internalizada na psique, mediante a recusa de ingestão alimentar; um(a) paciente com bulimia nervosa pode estar enfrentando inconscientemente um grande conflito relativo à separação-individuação de sua mãe, mediante compulsões e purgações do alimento ingerido (e da mãe, simbolicamente!).
Desse modo, durante o tratamento psicoterapêutico será dada uma atenção especial à relação do(a) paciente com a figura materna. Ressaltando-se que a imagem materna (representação internalizada da mãe que irá moldar o complexo materno) nem sempre corresponde a mãe como pessoa física, assim como também difere – e aqui adentramos num campo de suma importância em tais tratamentos – do arquétipo da grande-mãe; são três componentes distintos!
Além disso, sabemos que os TAs em mulheres podem ter sido desenvolvidos como defesas inconscientes a experiências negativas de abusos físicos e/ou psicológicos quando crianças, que lhes acarretam fortes sentimento de culpa e de agressividade; uma vez que, quando não se consegue ultrapassar ou ressignificar essas experiências de violência sofridas na infância/adolescência (ou mesmo na vida adulta), a mulher pode se desconectar de seu funcionamento emocional, em virtude de uma cisão entre mente e corpo, e refletir todo seu sofrimento através de restrições na dimensão física-corporal (função alimentar), como forma de se defender inconscientemente das lembranças e emoções perturbadoras. Assim, a restrição alimentar, por exemplo, pode ser simbolicamente um ataque ou uma defesa ao corpo ou mesmo à sexualidade feminina.
A tradicional frase ‘eu não sinto fome’ demonstra a fantasia inconsciente de se situar além das necessidades básicas de sobrevivência e reflete intensos impulsos autoagressivos e suicidas. (EIZIRIK; AGUIAR, SCHESTATSKY)
Portanto, no tratamento dos TAs (que normalmente demanda a integração com outras teorias e intervenções terapêuticas e a participação de uma equipe multidisciplinar) – uma vez ultrapassada a fase mais emergencial decorrente de situações clínicas mais graves que, no caso, podem exigir uma rápida redução dos sintomas alimentares, sendo mais favorecida por outras abordagens – a abordagem psicodinâmica visa ajudar o(a) paciente, primeiramente, a verbalizar ou nomear os seus estados emocionais (sentimentos muitas vezes congelados e deixados na sombra), restabelecendo a conexão do seu corpo ao seu mundo emocional e recuperando sua capacidade de simbolização; em seguida, a entender melhor o significado subjetivo dos seus sintomas alimentares, através dos fatores inconscientes que vão vindo à tona ao longo do tratamento; bem como a lidar de modo mais adaptativo com seus conflitos emocionais mais profundos e com suas vulnerabilidades (baixa autoestima, autoimagem negativa ou distorcida, falta de confiança própria etc.). Tudo isso, entendendo-se o transtorno alimentar como uma comunicação simbólica e reflexo do conflito psíquico a ser resolvido.
A terapia psicodinâmica deve facilitar o mundo subjetivo da paciente a emergir. Isso ocorre de forma lenta, porém progressiva, quando o terapeuta mantém uma atitude de curiosidade e questionamento empático, tendo a experiência subjetiva da paciente como foco da atenção. (EIZIRIK; AGUIAR, SCHESTATSKY)
Por fim, no que tange à obesidade, cumpre esclarecer que – apesar de não ser considerada um transtorno mental pelo DSM-5, que aponta “uma gama de fatores genéticos, fisiológicos, comportamentais e ambientais que variam entre os indivíduos” como contribuições para seu desenvolvimento, a obesidade pode acabar desencadeando um transtorno psíquico (ex. depressão), razão pela qual o acompanhamento psicológico é também importante nesses casos. O próprio DSM menciona, igualmente, que a obesidade pode estar associada a outros transtornos psíquicos (TAs, transtornos de ansiedade e de depressão, bipolaridade etc) como também a efeitos colaterais de medicação psicotrópica.
Referências:
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-V (5a ed.). Porto Alegre: Artmed, 2014.
EIZIRIK, C. L., AGUIAR, R. W., SCHESTATSKY, S. S. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2015.
Comments