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  • Foto do escritorKahlinne Rocha Brandão

Uma interpretação... Sonhos: "A aldeia de moinhos" (filme de Akira Kurosawa)


Na obra A Natureza da Psique (§§ 561-564), Jung aponta como fases que compõem a estrutura dos sonhos (1) a exposição, que indica sobretudo o lugar da ação onírica, os personagens, a situação inicial e, por vezes, o tempo; (2) o desenvolvimento da ação; (3) a culminação ou peripécia, momento no qual acontece algo de importante; (4) a lise, ou seja, a solução ou o resultado do conteúdo onírico, na qual há um desfecho do “drama” representado no sonho.

Nessa linha de entendimento, podemos refletir quanto à estrutura do sonho em questão da seguinte forma:

EXPOSIÇÃO – Um jovem chega a uma aldeia muito bela e tranquila, onde há vários moinhos de água em funcionamento harmonioso e que fazem parte da natureza encantadora que a circunda. Avista algumas crianças alegres que apanham flores e as colocam sobre uma pedra junto a uma ponte. Em seguida encontra um velho senhor que trabalha, pacificamente concentrado, na feitura ou no concerto de uma roda de moinho, e entra em diálogo com ele. O sonho parece ser atemporal. Estes são os personagens principais (o jovem e o velho), o local (a aldeia de moinhos) e a ação inicial do sonho.

DESENVOLVIMENTO – No contexto onírico, o jovem – que, de início parece perplexo diante da beleza e da serenidade daquela aldeia a qual, provavelmente, é bem diferente do local de onde ele vem; mas, logo em seguida, passa a obter alguns ensinamentos de profunda sabedoria através das informações que vai obtendo do velho senhor. Bastante interessado em compreender tudo aquilo (uma aldeia na qual se vive “como o homem de antigamente”), o jovem vai adquirindo conhecimento acerca da “maneira natural da vida”, na qual o ser humano faz parte da natureza, e dos verdadeiros valores para se viver bem, com alegria e longevidade. Descobre que as flores depositadas sobre uma pedra ao lado da ponte referem-se a um costume local decorrente da morte de “viajante doente” que morreu ali, sendo enterrado no local em compaixão pelos aldeões.

CULMINAÇÃO/PERIPÉCIA – O sonho alcança um ponto bem importante quando o jovem escuta o som de uma celebração acontecendo na aldeia e o velho lhe explica que se trata do funeral “bom e alegre” de uma aldeã que faleceu naturalmente aos 99 anos. Na aldeia não existem templos nem padres, sendo os mortos enterrados num cemitério na colina pelos próprios aldeões, com uma festa de agradecimento pela vida longeva que fora suficientemente dedicada ao trabalho em sua aldeia. O jovem percebe o quanto aquele velho tem disposição de viver e equilíbrio em suas emoções. Em seguida, o velho se junta à procissão, a qual o jovem vê passar, ficando bastante extasiado com as músicas, danças e flores que são lançadas no caminho por crianças; demonstra um sentimento de respeito e uma atitude reflexiva diante daquele processo tão natural de vida e morte que acaba de assistir.

LISE (RESULTADO) – Após essa imagem (que parece ter tocado bem fundo na alma/psique do personagem), o jovem – atravessando a ponte em retorno – toma uma decisão importante e volta até a pedra para também deixar flores ao viajante ali enterrado, seguindo o costume dos aldeões; e então segue seu caminho pela ponte, agradecido, feliz e transformado.

Portanto, através desse contexto “dramático”, retratado na sequência de belas imagens oníricas, podemos analisar algumas situações simultâneas e interessantes que são representadas no sonho, tais como a chegada do jovem andarilho na aldeia em estado de curiosidade e encantamento e a presença [e partida] do velho que, inicialmente, trabalha de forma tranquila com uma roda de moinho, passando a haver um diálogo entre ambos no qual é transmitida uma sabedoria atemporal, sobretudo no que tange ao natural ciclo de vida do ser humano, como parte da natureza.

Todavia, um fato bastante sincrônico é retratado no momento em que o velho explica ao protagonista acerca do motivo das flores deixadas na pedra da tumba do viajante morto, o velho gira a roda do moinho diante de si, e ele escuta o som de uma celebração se aproximando, que, enfim, fica sabendo se tratar de um alegre funeral de uma anciã falecida aos 99 anos e que será festivamente enterrada no cemitério na colina (arquétipo da morte).

Nessa imagem há também a representação simbólica das águas que passam na cena por trás dos personagens (o processo de vida-morte-vida que segue sempre). Ademais, após que o velho vai se juntar aos aldeões que festejam com música e dança no percurso do enterro, quando a procissão (aldeões carregando o caixão da falecida) passa pelo protagonista, este se encontra de pé bem ao lado da pedra (tumba do viajante) junto à ponte; em seguida, observa diversos moinhos de água rodando harmoniosamente e segue pela ponte, quando enfim ocorre a solução (lise) do sonho.

O sonho provoca em mim sensações de bem-estar e leveza em virtude da tranquilidade que é transmitida pelas imagens da vida integrada à natureza na aldeia dos moinhos onde tudo ocorre (centro, roda, Self), o som das águas e dos pássaros, bem como a beleza da imagem dos moinhos e da natureza transmitem sensação de uma boa vida. O estado mental é de equilíbrio ao ver as imagens do sonho, mas à nível mental provoca também algumas apreensões acerca do comportamento antinatural que nós seres humanos estamos adotando concernente à destruição da natureza (sombra).

O pensamento que mais permanece em minha mente durante o sonho é “seria tão bom se tudo fosse assim”. E a frase do velho senhor (sábio) que mais me chama a atenção é “tentamos viver como o homem de antigamente”, despertando o pensamento sobre o que seria esse homem de antigamente. Provoca um sentimento de que é possível esse resgate da integração com a natureza e do equilíbrio da vida.

E a intuição que causa é quanto ao alcance da sabedoria interna do velho, que ela está sempre lá, tranquilamente, esperando a chegada de nossa parte “jovem” (ego) para lhe transmitir seu conhecimento. Mas, que é preciso a atitude de ir buscar, a vontade de conhecer e a disposição para questionar, estranhar, refletir e descobrir, como ocorre com o jovem andarilho, que ao final toma uma decisão (mudança), homenageia a si mesmo e segue seu caminho, como a indicar que passou pelo processo de individuação, morrendo e renascendo para uma vida mais plena de sentido.

Desse modo, considero que o sonho apresenta os complexos que comumente atingem a vida moderna do ser humano, que se encontra desassociado da natureza, expressa orgulho e vivencia unilateralmente o materialismo (sobretudo, por parte da ciência), e que acredita ser capaz de dominar a natureza de modo inconsequente. Ou seja: complexos de superioridade (orgulho do saber científico), materialismo e ganância (ausência de limites e de consciência acerca do ciclo natural da vida – dia/noite, vida/morte – através de uma vida cujo objetivo é unicamente querer sempre mais ganhos financeiros e comodidades ilusórias), separação ou individualismo (ego x natureza).

Quanto aos arquétipos, a base das imagens arquetípicas apresentadas no sonho, podemos perceber o Self (na imagem da aldeia, da roda dos moinhos, e do centro – uma vez que os aldeões “eles vivem em outros lugares”, conforme informa o velho); a grande-mãe (terra, natureza, ciclo de vida natural); o herói, na figura do jovem (ego em desenvolvimento); as crianças (como etapas do desenvolvimento – criança/jovem/idoso ou retratando o novo, o princípio); o velho sábio; a morte (como parte natural da vida); a celebração (gratidão e reconhecimento) e o funeral (fim de etapa, encerramento); a ponte, símbolo da transição a ser feita no processo de individuação, a passagem, o caminho (caminhar/viajar) ou, ainda, a ligação ou comunicação entre consciente e inconsciente; o movimento das águas/moinhos, retratando o equilíbrio das emoções e/ou o movimento da libido; a pedra (símbolo da matéria a ser transmutada).

O destaque dado ao personagem que retrata o velho sábio é de fundamental importância, uma vez que é através do diálogo estabelecido com ele que o sonho transmite a sabedoria superior do Self à psique consciente do sonhador.

Por sua vez, a ação do protagonista é, ao mesmo tempo, passiva – uma vez que ele observa tudo que está ao redor, no início em estado de perplexidade e depois em estado de gratidão e alegria pela experiência, e ativa – posto que ele não só observa como também participa caminhando (buscando) e questionando ao velho sábio sobre tudo aquilo que lhe parece uma novidade, algo ainda estranho à sua compreensão da vida. Havendo no sonho um desfecho, chamado por Jung de lise, conforme acima apontado, posto que, ao final, o jovem adota sabiamente uma atitude benéfica para sua vida, representada pela decisão – tomada no meio da ponte! – de também participar do costume que ocorre naquela aldeia, deixando um ramo de flores sob a pedra (internalizar e concretizar conscientemente toda aquela sabedoria recém adquirida), e segue seu destino feliz e satisfeito.

Referência:
BOSNAK, Robert. Breve Curso Sobre Sonhos – técnica junguiana para trabalhar com os sonhos. São Paulo: Paulus, 1994.
HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos – Manual de Teoria e Prática. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed., 15ª reimpressão. Petrópolis: Vozes, 2021.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. 10. ed., 16ª reimpressão. Petrópolis: Vozes, 2021.
JUNG, Carl Gustav. A Vida Simbólica. 7. ed., 13ª reimpressão. Petrópolis: Vozes, 2021.
SANFORD, John A. Os Sonhos e a Cura da Alma. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1988.
Texto extraído de trabalho realizado pela autora no curso de pós-graduação em Psicologia Junguiana.


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